segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Alcântara Nogueira - Sua Original Interpretação da Filosofia de Spinoza

ALCÂNTARA NOGUEIRA

(Este artigo foi publicado pela revista CONATUS, Partes I e II, 
Vol. 5, número 9, de Julho de 2011 e Número 10, de Dezembro de 2011, com notas de rodapé. Editora da Universidade Estadual do Ceará - EdUECE - A Revista está disponível também na Internet)

Por Noé Martins de Sousa

Francisco Alcântara Nogueira nasceu em Iguatu, Ceará, no dia 15 de abril de 1918 e faleceu em Fortaleza, em 26 de março de 1989, tendo sido velado na Faculdade de Direito do Ceará, em Fortaleza, e seu corpo inumado no Cemitério São João Batista, em nossa Capital . Seus pais foram Alfredo Nogueira de Castro e Maria Alcântara Nogueira e eram pessoas de posse, pois educaram os filhos , numa época em que a educação era privilégios de pequenas minorias. Alcântara Nogueira foi concluir sua educação superior no Rio de Janeiro, onde formou-se em Direito na antiga Faculdade Nacional de Direito da ex-Universidade do Brasil (hoje, Universidade Federal do Rio de janeiro – UFRJ), localizada na conhecida Praia Vermelha
Alcântara Nogueira deveria seguir carreira na área de medicina, mas acabou optando pela área de direito, bacharelando-se em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito).
Alcântara Nogueira, como se disse, concluiu seu curso superior no Rio de Janeiro, onde chegou por volta de 1935 e onde viveu cerca de vinte anos, regressando ao Ceará em 1963 (ou 1964). No Rio, conheceu o ilustre conterrâneo Clóvis Beviláqua, de quem se tornou amigo e, praticamente, secretário particular.
Retornando ao Ceará em 1963, ingressou como professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e na Faculdade de Filosofia do Ceará – FAFICE (hoje, Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará – UECE). Nesta época, já era procurador da Providência Social, hoje INSS. Pertenceu, até sua morte em 1989, ao Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), sediado em São Paulo, do qual foi presidente da seção do Ceará.
Foi membro da Associação Brasileira de Filosofia Jurídica e Social, entidade filiada à Association of Philosophy for the Law and Social (IVR), sediada em Helsink, na Finlândia. Foi também membro do Conselho Deliberativo do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, CDPB), de Salvador, Bahia.
Durante os últimos 45 anos de sua vida, o professor Nogueira colaborou nos mais diversos órgãos da imprensa nacional e estrangeira, destacando-se “Dom Casmurro”, “Correio da manhã”, “Jornal do Brasil”, “O Estado de São Paulo”, etc. Publicou dezenas de opúsculos e livros, dentre os quais citamos: “Opúsculo de Filosofia” (1938) . Este opúsculo contém três dissertações sobre o pensamento de Spinoza: “Spinoza e Descartes”, “Das paixões e da moral segundo Spinoza” e “Deus na concepção de Spinoza”. “Três valores do espírito”(1944) , com prefácio de Clóvis Beviláqua, o último prefácio que o nobre mestre, autor do nosso primeiro Código Civil, escreveu e que foi incluído em seu livro póstumo “O que penso dos outros”, publicado em 1944, ano de sua morte. “O universo – Tratado de filosofia racional” , Rio de Janeiro, 1950. “Idéias vivas e Idéias mortas” , com prefácio do grande filósofo italiano, radicado na Argentina, Rodolfo Mondolfo, publicado no Rio de Janeiro em 1957, pela “Organização Simões Editora”. Este livro mereceu um artigo de Joaquim Pimenta, publicado no “Jornal do Comércio”, 3º. Caderno, p. 1, Rio de Janeiro, 08/09/1957. “O pensamento filosófico de Clóvis Beviláqua” , com prefácio de Hermes Lima, Rio de Janeiro, 1959, publicação do “Departamento Administratativo do Serviço Público – Serviço de Documentação”. Por esse livro, Alcântara Nogueira receberia o prêmio “Horácio Lafer” do Instituto Brasileiro de Filosofia (São Paulo). “Farias Brito e a filosofia do espírito” , Rio de Janeiro-São Paulo, 1962, publicação da Livraria Freitas Bastos S/A. “Iguatu/memória sócio-econômica” , publicação da Editora Instituto do Ceará, com a cooperação da Imprensa Universitária do Ceará, 1962, tendo havido uma segunda edição revisada e atualizada. Esta segunda edição foi publicada pela UNIDAS (união Iguatuense de Universitários), com Promoção Apoio Cultural Fundação Monsenhor Coelho, 1985. O livro trata da História de Iguatu, terra natal de Alcântara Nogueira . “O método racionalista-histórico em Spinoza” , com prefácio de Miguel Reale, São Paulo, 1976, edição comemorativa dos 300 anos de morte de Spinoza, publicação da Editora Mestre Jou. “O pensamento cearense na segunda metade do século XIX (em torno do centenário de morte de Rocha Lima)” , com prefácio de pinto Ferreira, Fortaleza, 1978. É publicação do Instituto Brasileiro de Filosofia (Secção do Ceará, da qual A. Nogueira era presidente), da Sociedade Cearense de Geografia e História e da casa Juvenal Galeno, tendo sido republicado pela Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXVIII, fasc. 110, pp. 147-185, São Paulo, sem a “Nota Explicativa e sem o Prefácio. “Filosofia e ideologia” , São Paulo, 1979, publicação da editora “Sugestões Literárias S/A. Este livro é na realidade uma coletânea de artigos publicados ao longo da vida do Autor, trazendo ainda alguns escritos inéditos. “Conceito ideológico do Direito na Escola do Recife” , com prefácio de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Fortaleza, 1980, publicação do Banco do Nordeste do Brasil. “Clóvis Beviláqua (vida e traços de seu pensamento)” , Fortaleza, 1987, publicação da Imprensa Oficial do Ceará – IOCE (Edições IOCE). “Poder e Humanismo”, Porto Alegre, 1989, publicação de “Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Este livro trata do Humanismo em Spinoza, Feuerbach e Marx, além da publicação de outros escritos (alguns inéditos). Esta obra saiu a lume após a morte do Autor.
Traduziu ainda “A vida política no Estado da Paraíba”, do francês Jean Blondel, Rio de Janeiro, 1957, e coordenou a tradução da “Constituição da República Socialista Federativa da Iugoslávia”, Rio de Janeiro, 1963.
Antes de falecer, em 26 de março de 1989, Alcântara Nogueira me comunicou, através de um bilhete, que tinha enviado para a Editora Forense, no Rio de Janeiro, o original do seu (último) livro “Direito – origem e evolução”, com prefácio do grande jurista cearense Paulo Bonavides . Infelizmente, até hoje (2011), o livro não foi publicado. Que aconteceu?
Sobre suas idéias, desde os primeiros anos de sua juventude, Alcântara Nogueira procurou estruturar seu pensamento através do estudo das ciências naturais. Influenciaram seu pensamento, nessa linha, J. Lamarck, Charles Darwin, Thomas Huxley, E. Haeckel. G. Mendel, etc., embora a estes se juntem influências outras, como a de Farias Brito (filósofo cearense), de filósofos pré-socráticos, como Parmênides, Heráclito e Demócrito, do renascentista Giordano Bruno e, especialmente de Spinoza, o grande inspirador de suas idéias.
Passados alguns anos, veio a influência decisiva de Spinoza, que inspirou o seu tratado de filosofia racional – “O Universo” – que mereceu uma análise crítica do filósofo Rodolfo Mondolfo, publicada na revista argentina “Notas y Estudios de Filosofía”. Após esse tratado, as idéias do filósofo cearense começaram a ser atraídas por uma visão política da realidade. Ao lado disso, a Metafísica de Spinoza servia de arcabouço para novas idéias que procuravam levar o Homem para um caminho de libertação não apenas mental ou intelectual, mas também social, conduzindo-o para uma posição contrária à exploração do homem pelo homem. Dirige-se então para o socialismo, mas rejeita o chamado “comunismo ortodoxo” ou stalinismo, com sua ditadura do partido sobre a sociedade e o culto à personalidade. Rejeita a opressão e a falta de liberdade do regime soviético (hoje, extinto) e cita uma passagem de Karl Marx em apoio de sua opinião. Este escrito de Marx é um artigo publicado na Revista Comunista em setembro de 1874, quando Marx já havia se afastado de L. Feuerbach, que foi descoberto e reeditado por Karl Grünberg, em 1921, em seu Arquiv für Geschit der Sozialismus:
“Nós outros não somos comunistas que renegam a liberdade pessoal e querem fazer do mundo um grande quartel de trabalhos forçados. É certo que existem comunistas que renegam a liberdade pessoal, porque consideram que esta obstaculiza a harmonia; mas nós outros não desejamos conquistar a igualdade a expensas da liberdade” ( apud Rodolfo Mondolfo, Bolchevismo y Dictadura (El mal está en el sistema), in Bolchevismo y Capitalismo de Estado (Estudios sobre La revolución russa)[Studi sulle rivoluzione russa], traductor: Esteban Rondanina, IV, Igualdad y Liberdad, Buenos Aires, Ediciones Libera, 1968, p. 258).
Isto significa que Marx não era partidário de se implantar o socialismo de qualquer maneira, sacrificando a liberdade. O próprio Lênin dizia, em 18 de janeiro de 1914, que não era partidário de se implantar o socialismo pela imposição, à força, contra a vontade do povo: “Só não queremos uma coisa: o elemento da compulsão. Não queremos levar o povo ao paraíso com um cacete” [Apud Louis Fischer, A vida de Lênin ( The life of Lenin, 1964), 2 vols. Citamos o vol. I, p. 167, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967] .
Após assumir o poder em 1917, Lênin gradativamente foi mudando de opinião, pois considerava a Rússia uma fortaleza situada, “dentro da qual nenhuma oposição, nem mesmo frágil, podia ser tolerada” (Isaac Deutscher, O Profeta desarmado, p. 40, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984).
Alcântara Nogueira, pois, era um marxista não ortodoxo. Aceitava algumas teses de Marx, como a origem social das idéias, mas rejeitava o catecismo bolchevista, o unipartidarismo, a opressão, e repressão à liberdade, que eram características do “comunismo real” soviético (comumente conhecido por “Estalinismo”), chinês, etc.
O trabalho de maior relevância de Alcântara Nogueira, no meu modo de ver - e na opinião do próprio Autor - é o seu livro “O método racionalista-histórico em Spinoza” , prefaciado por Miguel Reale e publicado em 1976, obra comemorativa (antecipadamente) dos 300 anos da morte de Spinoza, ocorrida a 21 de fevereiro de 1677, em Haia, na Holanda (o filósofo holandês havia nascido em 24 de novembro de1632).
A obra repercutiu na Holanda, Argentina e outros países. Este livro contesta mais de 200 anos de interpretação de Spinoza e nele Alcântara Nogueira, além de determinar as raízes do pensamento do filósofo holandês, defende a tese de que o racionalismo de Spinoza não foi um racionalismo puro, formalístico, do tipo cartesiano ou clássico, mas um racionalismo realista, dinâmico, histórico e, por vezes, dialético (mais adiante, faremos um ligeiro resumo dessa obra).
Continuando sua obra jurídico-filosófica e crítico-histórica, publicou “O pensamento cearense na segunda metade do século XIX” e “Conceito ideológico do direito na Escola do Recife”.
Deve-se destacar que Alcântara Nogueira, que se diz adepto do “racionalismo crítico”, encarna a figura do livre-pensador, não se submetendo a qualquer forma de dogmatismo ou sectarismo, escolhendo a verdade e a liberdade como valores dominantes de sua obra. Foi um homem de elevada estatura moral, leal aos valores que pregou, tendo dado um exemplo de vida num país tão carente de homens com valores morais, como o Brasil.

“O MÉTODO RACIONALISTA-HISTÓRICO EM SPINOZA”

Este livro de Alcântara Nogueira foi prefaciado por Miguel Reale, um dos mais destacados representantes do culturalismo no Brasil (inspirado no Neokantismo e também em Max Scheler, etc.). Reale nasceu em 1910 e faleceu em 2006 .
Este livro de Alcântara Nogueira é a obra principal do filósofo cearense e exigiu cerca de 15 anos de pesquisa. Um exemplar desse livro, juntamente com uma homenagem da Câmara Municipal de Iguatu a Spinoza e vários artigos publicados pelo Autor no “Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo” (São Paulo) e no “Jornal do Brasil” (Rio de Janeiro) por ocasião do tricentenário da morte do filósofo holandês - de origem espanhol-portuguesa – foram enviados à “Casa de Spinoza”, na Holanda, e Alcântara Nogueira recebeu de volta uma carta, em papel timbrado da referida Casa, de seu secretário G. van Suchtelen, datada de 24 de junho de 1977, com os agradecimentos. O timbre da carta é um círculo tendo no centro uma rosa e, abaixo, dentro do círculo, a palavra CAUTE, vocábulo latino que significa com cautela, prudentemente, que, como escreveu a mão Alcântara Nogueira na cópia da carta que me cedeu, era o lema de Spinoza, comumente colocado em sua correspondência. A carta foi escrita em francês e será reproduzida a seguir:

“VERENIGING Amsterdam, Hollande, le 24-6-1977
HET SPINOZAHUIS Pascalstraat 6
Secrétaire

Monsieur le professeur,

J’ai bien reçu votre colis postal contenant votre ouvrage sur SPINOZA et vos articles. Je vou en remercie vivement au nom de l’association La Maison de Spinoza (Het Spinozahuis).
Votre ouvrage, ainsi que vos articles, seront conserves dans la Maison, à la Haye (Haia), où Spinoza est mort et où une salle d’étude a été inaugurée le 21 février 1977, lors du tricentenaire de sa mort. Votre don est d’autent plus précieux pour nous, que nous ne possédons que très peu de publications en langue portugaise ou espangnole.
Nous aprécions également la documentation que vos nous donnez sur vous même, et surtout la copie de l’hommage rendu par votre municipalité à notre illustre philosophe. Veuillez bien transmettre nos sentiments de gratitude au conseil municipal de votre ville!
Notre association publie chaque année des études consacrés à Spinoza et nous aurions été heureux de vous envoyer quelques exemplares. Mais ces textes étant redigés em hollanddais, nous craignons que cet offre ne vous serait d’aucune utilité. Cependant nous vous feront parvenir le Catalogue en française de l’expositions sur Spinoza dans la Bibliothèque Universitaire d’Amsterdam. Ce Catalogue contient beacoup d’informations bio-et bibliographiques récentes, qui réfutent et corrigent nombre de legendes et de données erronnées ayant cours dans litérature internationale consacrée à notre philosophe. Nous espérons donc, que vous serez heureux de posséder cette documentation, qui vous sera envoyée par l’intermédiaire de l’Ambassade Hollandaise à Paris.
Veuillez croire, Monsieur le professeur, à mes sentiments les plus distingues.

(A)-------------------------------
G. van Suchtelen, secr. de
La Maison de Spinoza à
Rijnsburg

O grande jurista brasileiro e ex-ministro do trabalho e Previdência Social do gabinete parlamentarista do governo João Goulart, Hermes Lima, amigo de Alcântara Nogueira, escreveu um pequeno artigo sobre o seu livro, que foi publicado em jornais do Rio de Janeiro, Recife e Fortaleza . Além do artigo, ainda dirigiu ao filósofo cearense uma carta expondo suas impressões sobre o livro, datada de 8 de outubro de 1976, que reproduzimos a seguir:

“É um livro [ O Método Racionalista-Histórico em Spinoza] maduro, denso, em que você, estudando o método histórico-racionalista do Spinoza, contrasta sua interpretação com a de outras autoridades para chegar á conclusão que, no filósofo, a historicidade da razão é por ele conhecida e proclamada. Nesse sentido, os dois capítulos finais são decisivos. Realmente, o estado de natureza no homem dotou-o de um equipamento biológico-psíquico que o estado social desenvolve, condiciona e até dirige, mas que constitui um dado primitivo com que ele entra na sociedade. Você mostra que Spinoza viu isso com absoluta certeza. Você insiste e conclui: ‘em Spinoza, o homem está rigorosamente inserido na sociedade como ser objetivo, realizando na prática, a sua própria História’. Acho que esta é a grande novidade de seu livro, de sua análise do método racionalista-histórico do filósofo, o caminho da sua racionalidade. Assim, diz você muito bem, o homem conserva no seu estado social certa parte do estado de natureza. Aí, meu caro Alcântara, a gente poderia dizer que o homem é natural e construído. Bem, o livro é seu título de cidadania na cidade dos filósofos”. [assinado] Hermes Lima.

Depois dessas explicações externas, passarei à exposição do conteúdo e de outras informações sobre o livro .
Spinoza, há mais de 200 anos, é considerado, na História do Pensamento, um panteísta imanente que adotou o método racionalista clássico na construção de seu sistema. Isto é afirmado pela quase totalidade de seus intérpretes.
Segundo esses intérpretes, o panteísmo spinozista teria raízes diversas: na filosofia antiga, na renascentista (Neoplatonismo) e principalmente no judaísmo. Além dessas raízes, cita-se Descartes – para mencionarmos apenas um nome – de quem se diz que Spinoza sofreu profundas influências e de quem tirou seu método racionalista.
Tudo isto era tido e aceito há mais de duzentos anos. O livro do pensador cearense, além de mostrar o verdadeiro sentido do racionalismo spinoziano, ainda discute várias afirmações tradicionais imputadas ao filósofo holandês, demonstrando em que sentido elas são exatas ou falsas. E tudo isso com autonomia, riqueza de documentação e erudição, ao invés de se limitar a dizer amém aos intérpretes tradicionais.
Seu livro, de certo modo, é verdadeiramente revolucionário, neste sentido, e rompe uma tradição de quase 300 anos de afirmações tidas e repetidas como indiscutíveis. A tese central do livro afirma que o racionalismo de Spinoza não é um racionalismo puro (formalístico, lógico-formal) como o de Descartes, mas é historicista e concebe o homem como um ser social. Apenas alguns autores trataram desse tema em Spinoza - dentre os quais o filósofo italiano Rodolfo Mondolfo – mas não abordaram o assunto com a profundidade e a precisão do livro de Alcântara Nogueira.
A obra do autor cearense é relativamente pequena em volume, cerca de 200 páginas, embora se saiba que trabalhou nela aproximadamente 15 anos. Traz um prefácio de Miguel Reale, uma “Nota Preliminar”, uma “Introdução” e mais seis capítulos. No final é apresentada uma farta bibliografia de obras conhecidas e consultadas na elaboração de sua tese.

1 – “NOTA PRELIMINAR”

O Autor, nesta “Nota preliminar”, mostra parte do material bibliográfico utilizado sobre Spinoza. Não cita a “Opera Omnia” cuidada por Van Vloten e Land ( 4 volumes, 3ª. Edição, 1926), que é sem dúvida a edição mais famosa. Mas segue, nesse ponto, a edição de Bruder, também muito importante. Ademais, usa ainda edições conhecidas como a de Charles Appuhn, Carl Gebhardt, Gentile, etc., revelando-se um escritor que domina vários idiomas, como o latim, o espanhol, o italiano, o inglês, o alemão, o francês, o italiano, etc.
Além disso, o pensador cearense ainda utiliza vários outros intérpretes de Spinoza, confrontando textos, opiniões e apontando suas falhas, acertos e deturpações, demonstrando-se profundo conhecedor do assunto.
E, não se poderia deixar de mencionar, Alcântara Nogueira possui ainda em sua biblioteca pessoal um exemplar dos Renati Des Cartes Principiorum Philosophie, de autoria de Spinoza, edição original de 1663, cujo valor histórico se torna incalculável .

2 – “INTRODUÇÃO”

O livro do pensador cearense, como já se disse, propõe-se a determinar o método de Spinoza, ocorrendo antes dessa determinação, aspectos de caráter introdutório e necessário ao próprio estudo do método (pois seria uma amputação separar seu método de seu sistema), ficando a matéria específica de sua tese ao encargo dos dois últimos capítulos.
O Autor oferece, na “Introdução”, uma idéia geral sobre a atitude do pensamento spinoziano, inclusive do seu método. Mostra as dificuldades de interpretação dos diversos autores, muitas das quais falsas, porque procuram tomar aspectos parciais do spinozismo em sentido geral. Devido a essas interpretações unilaterais, nós encontramos um Spinoza encarado sob vários ângulos diferentes: visando submetê-lo a preconceitos de seus intérpretes, encontramos um Spinoza “julgado” no que tem de bom e de mau, de verdadeiro e de falso, útil ou pernicioso; ainda sob a luz desses preconceitos, é interpretado no sentido de se oferecer aprovação ou repulsa aos fundamentos do spinozismo, sendo colocada nestes fundamentos a sua suposta natureza mística ou religiosa; é interpretado visando determinar sua posição política, posição esta que comumente varia segundo a visão política de seu próprio intérprete (daí um Spinoza liberalista, autoritário-liberal, totalitarista, etc.); e também é interpretado com o fim de saber qual o método escolhido pelo filósofo de Amsterdam, que muitos tacham de sectário de um dogmatismo racionalista extremo, e outras coisas mais.
É assim que Alcântara Nogueira destaca R. G. Collingwood, brilhante intérprete de Spinoza, mas que não soube compreender o problema da “extensão” e “pensamento” no spinozismo. Acha Collingwood que Spinoza não apresentou nenhuma razão para explicar por que aquilo que é extensível pensa e vice-versa. Ora, só o fato de Collingwood colocar este (falso) problema nestes termos já revela que ele não atinou para o verdadeiro sentido da questão em Spinoza. Em sua filosofia (de Spinoza) há um unidade indissolúvel de pensamento e extensão (e entre infinitos outros atributos) em Deus, numa ligação e comunicação imediata e necessária, onde “Deus, o entendimento deste e as coisas por ele entendidas são uma só coisa” (Alcântara Nogueira, 1976, p. 19). A ordem e a conexão das ideias são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas, isto é, as coisas e o pensamento “sobre” as coisas forma(m) uma só e mesma unidade e identidade. Não compreendendo isto, Collingwood concluiu que a cosmologia (ontologia) de Spinoza havia fracassado.
Outros, ainda, por não compreenderem ou só compreenderem determinados aspectos do spinozismo, tomam as partes pelo todo, como já frisamos, e chegam a conclusões diversas, como um Spinoza ateu, materialista, místico, criador de uma nova religião, “homem embriagado de Deus”, filiado à cabala, etc., errando pelo defeito de enxergarem o pensamento de Spinoza apenas por um ângulo.
Assim é que classificando o método spinoziano como racionalismo puro, deixam de ver que seu método racionalista é dinâmico, às vezes dialético e ligado à realidade das coisas; que seu pensamento em conseqüência é historicista, não separado da existência concreta do homem, não se perdendo numa razão acabada, eterna, imutável e vazia, como acontece com o racionalismo clássico.

3) CAPÍTULO I: “UNIDADE DE VIDA E PENSAMENTO EM SPINOZA”

Este primeiro capítulo não é apenas uma biografia externa de Spinoza: é também um retrato de sua vida como pensador. Mostra que entre sua vida, aliás de curta duração (1632-1677) e seu pensamento há uma perfeita harmonia. Apesar das perseguições que sofreu por ter abandonado o judaísmo, permaneceu firme em sua atitude de vida, para não trair seu pensamento, afrontando as ameaças e rejeitando até uma pensão que lhe foi oferecida para que se retratasse ou se calasse. Não a aceitou, conforme as palavras de Colerus, um dos seus primeiros biógrafos, “parce qu’il n’étoit pás hypocrite, & [et] qu’il ne recherche que la Vérité” (apud A. Nogueira, 1976, p. 33).
Segundo João de Almada (in “ Suplemento Cultural” d’O Estado de São Paulo, p. 3, de 27/11/1977), o primeiro antepassado de Spinoza que conhecemos foi seu avô Abraham de Espinoza, originário da região de Monteros (montero = cavaleiro, guarda-costa de rei ou nobre), na Espanha. De lá, os judeus, ou judeus conversos, dentre eles a família Espinoza, foram banidos em 1492 pelos piedosos reis católicos Fernando e Isabel (outros historiadores dizem que tal banimento só ocorreu em 1511-1512). A família Espinoza migrou então para Portugal de onde, posteriormente, iria para Nantes (França) e, depois, para Amsterdam (Holanda), onde nasceu o filósofo Baruch de Spinoza, filho da segunda esposa de seu pai, Ana Débora (Anna Déborah), falecida em 5 de novembro de 1638, quando Spinoza tinha seis anos. Sua educação foi continuada por sua madrasta, Ester, lisboeta, que passou a se chamar Ester d´Spinoza. O pai de Spinoza chamava-se Miguel Rodrigues de Espinoza e nasceu provavelmente em Vidigueira, vila de Portugal [atualmente, sede do Concelho (divisão administrativa) de Beja] por volta de 1588 e faleceu na Holanda em 1654. Tinha um irmão, João Rodrigues de Espinoza (médico no Porto por volta de 1610), que foi condenado pela Inquisição em 1620. Curioso é que um filho deste (e, portanto, primo de Spinoza), Manuel Dias de Espinoza, esteve no Brasil. Vamos encontrá-lo em 1918 na Bahia. Suspeito de heresia ou rebeldia contra a Coroa, recebeu em 1618 o visitador Marcos Teixeira, para investigação. Acabou preso em 1622, por haver dito, em defesa do pai (que fora preso em Portugal), “que em muita necessidade de dinheiro estaria el-rei para mandar prender tanta gente”(João de Almada, 1977, p. 3. Artigo mencionado). Lembremos que naquela época, os condenados por heresia tinham seus bens confiscados pela Coroa e uma parte era destinada ao denunciador, como recompensa, estimulando assim a delação (até de inocentes). Manuel Dias de Espinoza teve que regressar a Lisboa e, ao confessar a prática de judaísmo, “sahiu condemnado a cárcere e habito perpetuo no auto de 5 de Maio de 1624” (J. Lúcio de Azevedo, “História dos cristãos novos portugueses”, apud João de Almada, art. cit.,1977. p. 3) . Miguel Rodrigues de Espinoza, pai do filósofo Spinoza, teve mais sorte. Mudou-se para Amsterdam, na Holanda, onde tornou-se um comerciante próspero. Ao morrer em 1654, deixou os filhos amparados por sua herança (a maior parte dos dados deste parágrafo não se encontra no livro de Alcântara Nogueira que estamos analisando, mas foi ele quem nos cedeu o “Suplemento Cultural” d’O estado de São Paulo, fonte dessas informações) .
As ideias de Spinoza foram consideradas heréticas pelo seu povo, os judeus e, como se recusou a se retratar e renegar sua filosofia, foi excomungado, embora não tenha comparecido ao ato de excomunhão. Mas foi Spinoza quem tomou a iniciativa de se afastar do judaísmo (Nogueira, 1976, p. 29). Spinoza já havia aos poucos se distanciado do judaísmo, deixando de pagar as taxas e respeitar o Sabá, além de expor suas idéias heréticas sem pedir segredo, de maneira que sua rebeldia vinha de antes de 1656, data de sua excomunhão. É o que diz Jonathan I. Israel:
“Também significa que a rebelião filosófica de Espinoza não pode ter sido inspirada, como foi repetidas vezes afirmado em anos recentes, por outro proeminente judeu herege de Amsterdam no final da década de 1650, Juan Prado (c. 1612-1670), antes um cripto-judeu na Espanha que recebera influência deísta entre os amigos cripto-judeus de Andaluzia, mas que não chegaria à Holanda, onde continuou sua carreira de deísta, senão em 1655; ou pelo excêntrico crítico da Bíblia, Isaac Peyère [1596-1676], que também só chegou em Amsterdam em 1655. Se aceitarmos que durante muitos anos, talvez cinco ou seis antes de 1655, Espinoza era simultaneamente um rebelde filosófico e, externamente, um judeu praticante, nem Prado nem La Peyère podem ter precipitado sua rebelião intelectual. Enquanto Jelles poder (sic) ter contribuído para sua formação inicial e encorajar sua/ preocupação com a filosofia e com o Cartesianismo, em especial o único personagem que parece tê-lo orientado fortemente em uma direção radical específica, como as duas primeiras biografias de Espinoza afirmam, foi o seu mestre de Latim, o ex-jesuíta fransciscus [=Francis= Franzie] van den Enden (1602-74)” (Iluminismo radical, pp. 206-7, São Paulo, Madras, 2009).
Isto significa que a rebeldia de Spinoza vinha de vários anos antes da data de sua excomunhão. Alcântara Nogueira diz que antes de ser excomungado, Spinoza foi convidado a comparecer diante do rabino Saul Levi Morteira , mas não vacilou: defendeu suas idéias, consideradas heréticas (1976, p. 29, in nota). Jonathan I. Israel (op. cit., p. 210) confirma esse “confronto crucial entre Espinoza, apoiado por Juan de Prado, de um lado e, do outro, pelo rabino Saul Levi Morteira, sobre as crenças fundamentais judaicas, em uma noite de estudos comunais a qual o poeta sefardita de Amsterdam Daniel Levi de Barrios descreveu em 1683 como um encontro épico no qual o ´sabio´ Morteira defendeu ´contra os espinhos [em espanhol, espinos] nos campos [em espanhol, prado] da impiedade´, um evento que não poderia ter ocorrido antes da chegada de Prado em 1655, que ocorreu, da fato, mais tarde naquele ano” (cf. Nogueira, 1976, p. 32).
Quer a rebelião de Spinoza tenha começado mais cedo ou mais tarde, o certo é que foi excomungado em 1656. Van Vloten assim descreve a fórmula da excomunhão:
“Os chefes do Conselho Eclesiásticos fazem saber que, já bem convencidos das nocivas opiniões de Baruch de Spinoza, procuraram, de diversas maneiras e por várias promessas, desviá-lo de seus caminhos desastrosos. Tendo em vista, porém, que não conseguiram fazê-lo adotar qualquer maneira melhor de pensar; que, pelo contrário, a cada dia têm mais provas das horríveis heresias por ele nutridas e confessadas, e da insolência com que essas heresias são promulgadas e difundidas, com muitas pessoas merecedoras de créditos tendo testemunhado isso na presença do citado Spinoza, este foi considerado plenamente culpado das mesmas. Por isso, realizada uma revisão de toda a questão perante os chefes do Conselho Eclesiástico, ficou resolvido, com a concordância dos Conselheiros, anatematizar o referido Spinoza, isolá-lo do povo de Israel e, a partir do presente momento, colocá-lo em anátema com a seguinte maldição:
Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, nós anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Spinoza, com a concordância de toda a sacra comunidade, na presença dos livros sagrados com os 613 preceitos neles contidos, pronunciando contra ele a maldição com a qual Elisha amaldiçoou as crianças e todas as maldições escritas no Livro da lei; todos vós que fordes obedientes ao Senhor vosso Deus sejais salvos nesta data.
Ficam, portanto, todos os advertidos de que ninguém deverá conversar com ele, ninguém deverá comunicar-se com ele por escrito; que ninguém lhe preste qualquer serviço, ninguém resida sob o mesmo teto, e que ninguém se aproxime dele mais de quatro côvados, e que ninguém leia qualquer documento ditado por ele ou escrito por sua mão” (apud. Will Durant, A história de filosofia, pp. 158-9, São Paulo, Nova Cultural, 1996, etc.).
E tudo isso em nome dos anjos, dos santos e de Deus, que são mostrados como exemplos de tolerância, de piedade e de bondade. Alguns autores tentam justificar o rigor desta maldição pela sociedade da época, o que ainda é pior, pois apenas mostra que o espírito do tempo estava contaminado ou dominado pelo fanatismo, pela teocracia, pela cegueira e intolerância religiosa. E ainda falam que o Diabo existe e que é mau...
E isto ocorreu em plena Holanda, país laico, que na época era considerado um dos mais liberais, tolerando o poder temporal as mais diversas ortodoxias .
Enfim, Alcântara Nogueira procura demonstrar que Spinoza viveu de acordo com suas idéias e que suas idéias constituíam um sistema, uma visão de mundo.
Assim, “no torvelinho das lutas e contradições, o comportamento de Spinoza não só se racionalizou através de continuado progresso, como quase que se confundiu com a elaboração de sua filosofia. Talvez nenhum outro filósofo haja construído, como ele, a sua ideologia, como colocando a perquirição do espírito em consonância com a realidade social de seu tempo, em plena marcha para o futuro que, muita vez iria confirmá-la” (1976, p. 43).

4) “CAPÍTULO II: “A AUTO-REFLEXÃO EM SPINOZA”

Alcântara Nogueira, no segundo capítulo de seu livro, procura fazer uma espécie de radiografia do intelecto de Spinoza, para determinar-lhe o sentido, a orientação e o caráter de sua filosofia.
Spinoza parte da afirmativa de que filosofar é aprender a viver, ao contrário do que teria dito Sócrates (o Sócrates platônico), para quem filosofar é aprender a morrer. É que Sócrates acreditava numa imortalidade não apenas do ente alma, mas numa imortalidade pessoal, vivendo em conseqüência e em função desta.
Spinoza, como não aceitava uma imortalidade de caráter pessoal, como muitos líderes religiosos, rejeitou também qualquer espécie de sobrenaturalidade em seu sistema. É neste sentido que Alcantara Nogueira diz que Spinoza humanizou o pensamento filosófico. Em seu sistema não há lugar para a transcendentalidade de Deus, como também para a criação do nada ( ex nihilo). Criar do nada significa criar alguma coisa que para existir não supõe nada antes dela, a não ser Deus. Ora, o Universo e Deus são uma só e mesma coisa e não são coeternos porque não são duas coisas, mas uma só e mesma unidade inseparável. Daí por que tanto a criação instantânea ( um Big Bang, por ex.) quanto a criação emanentista ( = coeternidade), que dão idéia de dualidade, não se adéquam ao pensamento de Spinoza. O filósofo holandês naturalizou Deus e humanizou a Natureza – humanizou não no sentido antropomórfico, mas no sentido de que rejeitou a forma de sobrenaturalismo ou transcendentalidade de um Deus, aceitando o Universo como autor de si mesmo. O mundo é autosubsistente. O mundo é pai e filho de si próprio, Deus e o Mundo são uma só e mesma coisa.
Por conseqüência, esse naturalismo do pensamento spinoziano é contrário a qualquer intervenção nas leis da natureza (daí a rejeição do “milagre”, por ser contrário às leis de Deus), porque admite – como o próprio filósofo o diz – a “ordem fixa e imutável da natureza ou concatenação das coisas naturais”, que Spinoza chama “governo de Deus” (apud. A. Nogueira, 1976, p. 49).
Por isso, Alcantara Nogueira houvera resumido em dois os fundamentos maiores que predominam no sistema spinoziano:
“...primeiro, o sentido naturalista, incompatível com toda e qualquer idéia de sobrenaturalidade, visando conceber o universo como realidade identificada com Deus e dele inseparável, o que permite afirmar ser o panteísmo spinoziano dotado de uma estrutura, cujos termos essenciais se explicam numa eqüipolência; e segundo, a compreensão dessa unidade ou o que dela decorre, através da valorização do entendimento, oferecendo à razão não apenas a condição de elemento imprescindível, mas, igualmente, instrumento que permite considerar o intelecto como expressão dinâmica, capaz de progresso ou aperfeiçoamento” (1976, p. 47).
A este último fundamento se prende o método spinoziano, que é a verdadeira espinha dorsal de seu sistema: a razão como capaz da progredir, de se aperfeiçoar, de se historicizar.
A seguir, o autor cearense tece várias considerações a respeito do pensamento de Spinoza e as relaciona à sua vida concreta, pois, como frisamos anteriormente, o filósofo holandês viveu o seu pensamento e o seu pensamento brotou de sua vida.
Depois, o autor cearense mostra aspectos decisivos do sistema spinoziano no campo político, salientando o seu caráter popular. Não é um representante das elites burguesas da época ou representante do liberalismo eclodido no seio da burguesia dos séculos XVII-XVIII e filiado ao racionalismo clássico; pelo contrário, Spinoza liga o poder ao povo, considerando a massa elemento primordial na organização da sociedade política. Realça que é pelo trabalho que os homens alcançam o seu conforto, especialmente a minoria, que se ufana de ser autora das realizações do povo, a quem imputa a culpa de ser estúpido, sem inteligência, a fim de se manter segura em seus privilégios. Spinoza á partidário da democracia e da forma republicana de governar.
Spinoza chega mesmo a querer que, na Monarquia, o rei perca o direito de deixar o Estado (Imperium) ao filho por herança, salvo com o consentimento do povo. Isto significa na prática o mesmo que exigir uma monarquia eletiva e, logo, sua ruína. A razão disto é que a natureza é a mesma para todos; o que diferencia é o poder e a cultura. E também porque a soberba é própria de todos que dominam. Por isso defende a existência de um Conselho, com membros eleitos periodicamente (no máximo 5 anos) para limitar o poder do monarca, considerando a monarquia a pior forma de governar o Estado.
Alcantara Nogueira termina este capítulo mostrando que o sistema de Spinoza caracteriza-se como a filosofia que busca a compreensão da vida em toda a sua plenitude e não da morte, alcançando uma ética “biofílica” onde o bem é tudo o que conduz à vida e o mal tudo o que leva à morte, rejeitando a ética “necrofílica”, atribuída a Sócrates. Na verdade, a vida é a solução dos problemas, e não a morte, que é o fim de todos eles.

5) CAPÍTULOS III E IV: “AS RAÍZES DO PENSAMENTO DE SPINOZA”

É tema por demais polêmico determinar as raízes do pensamento spinoziano. Aqui, Alcantara Nogueira discute quase tudo o que disseram quase todos os estudiosos de Spinoza acerca dos problemas e das influências concernentes à filosofia do pensador holandês.
A respeito do caráter místico ou religioso de Spinoza, é mostrado que nem no médico Lucas nem no pastor J. Colerus , os primeiros autores a se pronunciarem sobre a personalidade do filósofo, encontra-se qualquer informação que justifique esse misticismo.
Como diz Alcantara Nogueira, a suposta religiosidade de Spinoza não é tese nova. Em 1690, o alemão Johan Georg Wachter ao visitar Amsterdam encontrou outro alemão chamado Speet que se convertera à Lei Mosaica na comunidade portuguesa, trocando o nome para Moisés Germanus, o qual lhe falou que os cristãos adoravam um Deus extra-mundo, enquanto que os judeus adoravam um Deus que se manifesta na natureza e/ou na sua ação. Disto, Wachter concluiu que o spinozismo se confunde com o judaísmo e que o próprio Spinoza era filiado ao “cabalismo” . Começa a partir de então uma série de interpretações que colocam o spinozismo como uma doutrina filiada em caráter e objetivo ao judaísmo, ao misticismo, à religião.
Carl Gebhardt segue esta linha de intérpretes e inclusive vincula Spinoza não só aos “colegiantes”, como a Buda, Lao-tsé e Plotino, afirmando que “era seu destino de marrano ter que buscar sua religião” (Nogueira, 1976, p. 69). Alcantara Nogueira retruca que se o objetivo de Spinoza fosse a religião, por que se colocou contra o judaísmo ou por que não ingressou em uma das inúmeras seitas protestantes liberais da Holanda de seu tempo? Ou por que não fundou ele próprio uma nova religião? Não consta em nenhum documento histórico que Spinoza tenha exercido o sacerdócio – como, pois, teria fundado uma nova religião?
Os objetivos do Spinozismo não eram os mesmos dos colegiantes, embora em ambos a liberdade de pensamento fosse tema comum. Spinoza elege a natureza como poder supremo (Deus e Universo são uma só e mesma coisa) e aproxima o homem do próprio homem, para quem nada existe de mais útil do que seu próprio semelhante. Deus não é o espaço metafísico de todas as coisas, mas a essência ativa, dinamismo – “Deus sive natura”. Deus é o mesmo que a natureza. Nisto se resume o caráter de seu humanismo e de seu pensamento.
O teólogo Étienne Gilson se situa naquela linha religiosa referida, para quem Spinoza era um “ateu religioso”. Somente Isaac Deutscher, recentemente, faz uma interpretação exata ou quase exata do sentido do Deus spinoziano, afastando-o do judaísmo: Spinoza conceberia um Deus que permanece judeu, mas uma vez decifrado deixaria de ser judeu. Certamente Alcantara Nogueira fala assim com base nessa passagem do livro de Deutscher (publicado postuamente por sua viúva) e que o filósofo cearense lista na bibliografia de seu livro, e que citamos:
“A ética de Spinoza não era mais judaica, mas a de um homem sem amarras, assim como o seu Deus já não era mais o Deus dos judeus. Seu Deus, unido com a natureza, derramava sua divina identidade separada e distintamente. O Deus e a ética de Spinoza, de certo modo, permaneciam judeus, mas, o monoteísmo o levou a conclusão lógica e o Deus universal judeu foi decifrado. E, uma vez decifrado, deixou de ser judeu” ( O judeu não-judeu e outros ensaios, p. 32, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970) .
Por outro lado, Gebhardt ainda faz uma interpretação barroquiana do spinozismo, ligando-o ao Renascimento e aproximando-o de Rembrandt quanto ao caráter religioso ou à divinização do dinamismo e da infinitude, aspectos característicos do barroco. Ora, Nogueira considera tal interpretação como puramente fantasiosa.
Outro grande intérprete de Spinoza é Von Dunin-Borkowsky, que considerou, como Gebhardt, o spinozismo perante o barroco, mas segundo Alcantara Nogueira, não logrou êxito. Seus argumentos mais parecem alegorias do que interpretação.
Spinoza ainda é acusado de ter recebido influência dos comentadores hebreus, como Filon de Alexandria, Abengabiral (Salomão bem Yehudi ibn Gebirol), Maimonides (Moses Maimou) Ibn Gerson (Gersonides), especialmente através de: Hesdai (Chasdai) Creskas, Ibn Ezra, Saadia bem Joseph ( ou Saadia Gaon), Bahya ibn Pakuda, Leon Hebreu (ou Leon Abiabanel), etc.
Filon de Alexandria ainda é um neoplatônico que interpreta o judaísmo alegoricamente. De imanente só aceita os “intermediários” (como as “razões seminais” dos estóicos), que em Filon se identificam com os anjos do judaísmo. É neste sentido que Deus cria ininterruptamente, porém permanece transcendente. Essa transcendência de Deus e essa direção mística são suficientes para afastar Filon de Spinoza.
Por ter sido um intérprete da Bíblica, Spinoza é acusado de ser místico. Spinoza realmente foi um intérprete da Bíblia, mas num sentido crítico-histórico, e não místico-religioso, com alegorias e outros artifícios, como o faziam os rabinos ou quase todos os exegetas hebreus. Abengabirol certamente tentou ultrapassar o dualismo, mas em vista a um monismo místico, o que não era o caminho de Spinoza. Não há, pois, uma influência direta, já que as intenções são diversas. Os dois pontos se tocam como coincidências, não como continuação.
Quanto a Maimonides, Spinoza, na interpretação da Escritura (Bíblia) se mantém em oposição a ele, pois seus métodos são opostos. Para Maimonides, a Bíblia deve ser interpretada não por ela mesma (como defende Spinoza) mas deve acomodar-se a uma natureza de ordem racional, um racionalismo suspeito como o de Maimônides que muitas vezes deságua no alegórico (cf. A. Nog., pp. 85-86). Neste sentido, também Spinoza difere de Alfakar, para quem a razão é serva da teologia . No íntimo, Maimônides tem a mesma finalidade de conciliar a razão com a fé, pois no “Guia dos perplexos” explica que as contradições entre uma e outra – que deixam perplexos os partidários da fé – são apenas aparentes.
Já León Roth, que pretende que Maimônides tenha influenciado Spinoza, não percebeu o sentido naturalista-realista do filósofo de Amsterdam, cujo método visava apenas alcançar a realidade como forma de conhecimento objetivo, e não como forma de sobrenaturalidade, o que se pode imputar a Maimônides.
Autores há que procuram influência de Saadia em Spinoza, que se existe é mínima. Baseiam-se no fato de que coincidem nos dois alguns pontos, como os infinitos atributos de Deus em Spinoza, e as propriedades divinas de Saadia, que formam uma unidade, por serem análogas; a idéia de que a alma pode ser senhora de suas ações, como falar ou calar (Spinoza) e a idéia de Saadia de que o homem pode falar ou permanecer em silêncio. Por isso, se existe influência, seria mínima.
Harry Austryn Wolfson, que encontra ou exagera essa influência, esquece que Saadia é um livre-arbitrista, o que é suficiente para afastá-lo de Spinoza, onde se encontra um determinismo ou, como se queira, um paralelismo psicofísico.
Ad. Franck, em relação a Gerson (Gersonides), diz que Spinoza está “visivelmente inspirado por suas doutrinas”. Nesta mesma linha de interpretação se acham Benzion, Kellerman e outros. Para distanciar Gersonides de Spinoza, basta que se grife, além de outras, essa oposição: a aceitação da predicação ou das profecias pelos sonhos ou astrologia, devidos à Providência, o que para Spinoza não tem sentido. Para Gersonides isso é possível e para ele o profeta é um homem que muito utiliza a razão, enquanto que para Spinoza, o profeta é o que menos utiliza essa faculdade. Spinoza é determinista e Gersonides procura salvar, ao mesmo tempo, a providência e o livre-arbítrio, livre-arbítrio este confundido ingenuamente pela religião com a liberdade humana. Por outro lado, o Deus de Gersonides é transcendente e a eternidade do mundo é falsa, já que teve começo. Em Spinoza, Deus é imanente e tudo o mais existe com ele. E, finalmente, Gersonides é místico e Spinoza naturalista.
De modo que se houve uma influência de Gersonides sobre o pensador holandês, não foi senão de modo genérico, sem qualquer profundidade digna de ser levada em grande consideração.
Outro judeu que supostamente teria exercido “enorme” influência sobre Spinoza foi o doutor Hesdai Creskas ( ou Crescas), também chamado Chasdai (ou Chazdai) Crescas, o célebre autor de “Or Adonai” (Luz de Deus). Alcantara Nogueira admite que ambos os pensadores, às vezes, navegaram no mesmo barco, por algum tempo, mas cada um ia para destinos diferentes. Nesta viagem é possível que o autor de “Or Adonai” tenha chamado a atenção de Spinoza para este ou aquele conceito, mas afirmar, como H. Joël, que tudo que possa florescer na especulação spinozista pode ser discernido em Crescas é fazer uma afirmação bastante temerária.
Crescas diz que, conforme demonstração de Spinoza, se fizermos uma busca de causas até o infinito, todas as coisas da natureza são efeito de uma causa; portanto, nenhuma coisa pode existir necessariamente por sua própria natureza, já que cada uma é efeito de cada outra. Mas Spinoza retruca que este argumento não parte do princípio de que o infinito não possa existir em ato, ou ainda do princípio de que para aceitar-se a existência das coisas ter-se-ia de recorrer a uma busca infinita, mas do princípio de que coisas que não podem existir por sua própria natureza, não podem existir por causa de outra que existe por si mesma.
Spinoza distancia-se de Crescas ao aceitar a existência da substância (res) por sua própria natureza e a sua unicidade e indivisibilidade. Esta indivisibilidade se estende ao mundo corporal cuja extensão é vasta como um campo contínuo de força que rege o espaço, o que vem a negar a existência do vazio, ponto de vista que, em parte, coincide perfeitamente com a Física moderna – pelo menos no que se refere ao universo que conhecemos.
Por outro lado, o espírito de Spinoza não leva em conta a piedade, mas a devoção pela verdade; para o nosso filósofo, entre a fé (teologia) e a razão (filosofia) não há comércio nem afinidade. E seu amor a Deus é o amor ao conhecimento, inexistindo a piedade religiosa, como aconteceu com Crescas.
Se ambos caminham juntos para rejeitar a criação “ex nihilo” (do nada) é para abolir a idéia de que o nada seja capaz de gerar algo. Como já diziam os gregos, “nada pode sair do nada e nada por ser revertido ao nada” . A partir desse ponto os dois se separam, pois Crescas se dirige para a fé e Spinoza para o conhecimento. Quer dizer, quando os dois pensadores se tocam, não se afinam. É como se de vez em quando seus caminhos se cruzassem, apesar de se dirigirem para cidades diferentes.
Outro autor que gozou da atenção de Spinoza foi Abraham bem Meier Abenesra (Ibn Ezra), de Toledo, que empregou a crítica histórica na interpretação da Bíblia. Mas como filósofo, Alcantara Nogueira considera duvidosa sua influência sobre Spinoza. Ezra é de inspiração neoplatônica e sua aceitação da ação de Deus sobre o mundo através de forças intermediárias é de procedência estóica. Dele é o famoso pensamento “o todo está no Uno em potência e o Uno encontra-se em ato no todo”, que Spinoza pode muito bem ter recolhido, embora não se possa provar que o filósofo holandês o haja conhecido, pois suas citações de Ezra são feitas no que se refere ao intérprete crítico-histórico da Bíblia e não ao filósofo. Spinoza, como já se disse, nega a aceitação do milagre como algo sobrenatural, porque isto contraria as leis da natureza (as leis de Deus), enquanto que Ezra não é claro como Spinoza, talvez temendo perseguições e prefere dizer que os milagres não devem ser aceitos de modo literal, podendo ser explicados alegoricamente. Ora, para Spinoza não há reticências e senões: o milagre não existe, porque pode ir de encontro às leis naturais (racionais, leis de Deus), pois tudo o que é contrário à razão é absurdo e deve ser rejeitado. Binilla y San Martin, H. G. Wolfson e Leon Dujovne são alguns dos autores que procuram determinar a suposta influência de Ezra sobre Spinoza.
Paul Siwek, Karpe e Victor Brochard são outros intérpretes que tentam enxergar influência religiosa sobre Spinoza.
O jesuíta Paul Siwek diz que Spinoza teria desejado construir uma “Religião da Razão”, embora admita que em alguns casos seu sistema esteja em contradição formal com as exigências da Razão. Mas diz que Spinoza foi um contemplativo e um místico, embora um “místico sui generis”. Diz que seu panteísmo é naturalista místico e que sua moral é mal adaptada à natureza humana, além de oferecer paternidade ao bolchevismo (cf. com as obras do padre Siwek – Spinoza et le panthéísme religieux, L´âme et lês corps d´après Spinoza e Au coeur du spinozisme, apud. A. Nogueira, 1976, p. 112). Alcantara Nogueira retruca que essa pretensa paternidade ao bolchevismo deriva de uma “confusão que a superficialidade de certos comunistas faz entre a sua doutrina e algumas idéias do humanismo marxista que Spinoza antecipou” (1976, p. 112) .
Siwek ainda diz que o pensamento de Spinoza é uma derivação do sentimento religioso do judaísmo ou das idéias religiosas dos pensadores israelitas antigos. Apesar de receber a aprovação de Jacques Maritain (no prefácio do livro acima mencionada, Spinoza et le panthéisme religieux), Alcantara Nogueira chega á conclusão de que o padre jusuíta “interpretou o que não é o pensamento de Spinoza” (1976, p. 113). E a seguir, coloca suas objeções a esse tipo de interpretações.
Spinoza não tinha orientação mística ou religiosa porque sua vida, na afirmação exata de C. Gebhardt, “não tinha nada de sentimental” (apud. A. Nog., 1976, p. 113) e o sentimentalismo é um componente básico da religião. Ademais, Spinoza aceitava a humildade e o arrependimento apenas como imperfeições do espírito e não como virtudes (positivas) da religião. Arrependimento, humildade, temor e esperança são usados pelos profetas apenas para levar temor e submissão ao povo, ao invés da libertação.
Por sua vez, Karppe afirma que no Deus natura de Spinoza o que existe mesmo é a divindade judaica: Iavé (Jeová). Mas é um Deus sui generis, aperfeiçoado ao longo do tempo por pensadores como Platão, Plotino, os panteístas do século XII e filósofos judaistas como M. Maimònides, Ibn Gerson (Levi bem Gerson ou Gersonides), Hasdai Crescas (Chasdai Creskas) e outros filósofos como Giordano Bruno, Descartes, etc., mas, “por muitos aspectos, é o Iavé bíblico” .
Alcantara Nogueira diz que os argumentos de Karppe não convencem, porque Iavé é ele mesmo ou não é. E Karppe empresta a Iavé traços humanos aperfeiçoados, caindo num antropomorfismo, o que é rejeitado por Spinoza. Este jamais humanizou Deus e a existência deste “afirma-se com a da Natureza, na mesma eternidade. Não são dois – Deus e Natureza - , mas um. Um que não foi nem será, porque é”(1976, p. 109).
Victor Brochard, conforme Alcantara Nogueira, estudou o mesmo problema, mas tirou conclusões nem sempre exatas .
Spinoza era um defensor irresoluto da razão e era um incrédulo, embora tenha falado respeitosamente da fé, que era considerada uma idéia inadequada, sinônimo de erro . Porém Brochard diz que Spinoza era um incrédulo que acreditava na revelação e tinha a “alma profundamente religiosa” (apud. Nogueira, 1976, p. 110), além de dizer que “em última análise, o Deus de Spinoza é um Deus pessoal” e que “o Deus de Spinoza é um Jeová muito melhorado” (idem). Alcantara Nogueira diz que seus argumentos anteriores refutam totalmente a interpretação de Brochard.
Recentemente, Diogo Pires Aurélio, em seu substancial estudo introdutório de sua tradução portuguesa do “Tratado Teológico-político” de Spinoza, também contesta a interpretação de Brochard, que considera um fracasso. Diz ele (op. cit., p. XXXII):
“Um (...) explicação [errônea] consiste em assinalar uma contradição entre a Ética e o Tratado Teológico-Político, entre o Deus sive natura e este Deus personalizado que deteria a ciência e a comunicava fragmentariamente aos homens. Ter-se-ia, afinal, Espinoza reconciliado com a tradição judaico-cristã, heterodoxamente embora? Impossível, já que toda a correspondência da altura e mesmo posterior no-lo apresentam fiel à doutrina da Ética. É isso que condena ao fracasso a tentativa feita por V. Brochard (1926, pp. 332-70, cit. Préposiet, 1967, p. 57) no sentido de encontrar a hipotética síntese que traduziria o Deus específico de Spinoza: um ´Jeová melhorado` que estaria presente nas duas principais obras do autor.”
Enfim, contra os argumentos dos que pretendem ver em Spinoza influência religiosa, Alcantara Nogueira (1976, p. 113, passim) apresenta as seguintes objeções:
- Spinoza nada tinha de sentimental (Gebhardt) e o sentimento é um dos componentes básicos da religião.
- A humildade e o arrependimento são fundamentais na religião e, em Spinoza, imperfeições do espírito.
- A meditação sobre a morte é tema supremo na religião; o pensamento spinoziano é adverso a essa preocupação. Porque cogitar da morte é forma de escravidão e, ao contrário, meditar sobre a vida é caminho de libertação.
Pollock, por outro lado, mostrou a separação entre o pensamento spinoziano e os princípios da cabala, por terem objetivos e processos de formação e desenvolvimentos que se opõem rigorosamente (por exemplo, é comum à cabala a doutrina da emanação, do poder intermediário de Deus, e da transmigração das almas). Segundo ele, a filosofia de Spinoza não tem nenhuma ligação com a cabala (cf. A. Nog., 1976, p. 117) .
Ademais, como se pode ver na Ética (segunda parte, escólio da proposição VII), Spinoza liberta-se da concepção transcendente de Deus, que leva à confusão. Para Spinoza, o entendimento de Deus e as coisas entendidas por Ele são uma só e mesma coisa ( há semelhança com o que dissera o próprio Aristóteles, na Metafísica, ao afirmar que Deus pensa o próprio pensamento – noesis noéseos). Se a verdade sobre as coisas e o conhecimento dessa verdade são coisas diferentes e, por outro lado, se Deus conhece toda verdade (com sua onisciência), então a proposição “Deus conhece toda verdade”, se é verdadeira, não está dentro do entendimento de Deus. E se não está, então não é verdade que “Deus conhece toda verdade”. E se continuarmos nessa linha de raciocínio, dizendo que “é verdade que Deus conhece toda verdade”, cairíamos numa progressão infinita, afirmando que ““é verdade que Deus conhece toda verdade” é uma proposição verdadeira”, etc. Embora esse problema seja seríssimo para quem gosta de raciocinar para além do infinito, em Spinoza ele não existe porque o filósofo holandês rejeitou a transcendentalidade de Deus. E fazendo isso, não houve mais separação entre Deus e as coisas, desaparecendo consequentemente o dualismo entre as coisas e o conhecimento sobre elas, isto é, entre a verdade e o conhecimento da verdade. Portanto, em Deus, conhecimento e verdade são uma só e mesma unidade .
Alcantara Nogueira ainda faz diversos confrontos entre outros pensadores e Spinoza, dentre os quais Descartes, que teria sido o pensador que mais o provocou e estimulou na formulação de seu sistema, embora entre ambos haja uma verdadeira oposição.
Por fim, diz Alcantara Nogueira:
“(...) diante dessas considerações, podemos concluir dizendo que, assim como as águas de inumeráveis rios, alimentadas por outras tantas correntes líquidas, das mais variadas procedências, que primeiro estiveram individualizadas, para depois se unificarem indissoluvelmente, na constituição das grandes massas oceânicas, também em Spinoza as inspirações que teve, originárias de diferentes fontes, se fundiram fortemente, na unidade de pensamento, sem mais se confundir com os elementos primitivos, para dar nascimento, na formulação total e última, a uma nova doutrina vigorosa e original” (1976, p. 136).
Para continuarmos a imagem de Alcantara Nogueira, podemos dizer, por exemplo, que a água é composta por dois elementos que em nada se parecem com ela ( hidrogênio e oxigênio), tendo esses elementos propriedades gasosa e inflamável, mas uma vez unidos num todo, este assume propriedade qualitativamente diferente, formando uma organicidade de nível superior. Em suma, a doutrina de Spinoza não é um ecletismo, uma colcha de retalhos, mas um sistema, e sistema coerente e original, distinto de cada influência em particular que absorveu.

6) CAPÍTULO V: “RAZÃO DINÂMICA E DIALÉTICA EM SPINOZA”

É comum dizer que Spinoza foi um racionalista puro, mero continuador do racionalismo cartesiano. Racionalismo este igual ao dos iluministas dos séculos XVII- XVIII e/ou ainda como o de Platão que não passa de um pensamento separado da realidade histórica, concreta, produzida pelo homem. As idéias de Platão, por exemplo, eram algo anterior ao mundo sensível (físico), o qual não passava de uma projeção no espaço-tempo de uma Ideia ou Espírito acabado, feito e perfeito. A razão é tida como algo fixo, independente (do real, concreto) e incapaz de progresso. O homem não participa do progresso, do evoluir histórico. Todo progresso em verdade não é progresso do homem ou da razão humana, mas etapas de manifestação de um Espírito ou Razão extra-mundo, no tempo, na realidade. Este é o racionalismo puro, que exige apenas as condições lógicas para algo ser real. Veja-se o que afirma Alcantara Nogueira:
“Em todas as épocas o que se chamou de racionalismo no sentido rigoroso da expressão, procurou alcançar o conhecimento através da concepção de que o mais poderoso argumento se encontrava estruturado como forma de raciocínio que dispensava limitações condicionadas aos dados da ciência e especialmente ao tempo como fator necessário ao aperfeiçoamento (e evolução) desse conhecimento. Quer dizer que o raciocínio, desde que atendesse a regras que não pecassem contra a lógica, bastava para atingir o que o conhecimento aspirava, estando tudo o mais apenas como ajuda complementar. O raciocínio, portanto, não pressupunha outro instrumento que não o seu próprio poder criador em torno do qual tudo teria que acomodar-se ou explicar-se” (1976, p. 166).
Além de não ser um racionalista puro, Spinoza também é dialético em seu pensamento, como diz Engels, ao citar a conhecida frase: “ toda determinação é uma negação” (Ommnis determinatio est negatio; Engels faz esta citação em seu livro Anti-Dühring. Tal afirmação está, originalmente, numa carta de Spinoza a seu amigo Jarig Jelles, datada de Haia, de 02-06-1674) . Todo ente real é limitado e, portanto, envolve negação, uma separação deste ente, dos demais entes que o cercam. Quando digo “isto é uma árvore”, implicitamente nego que seja homem, gato, pedra, ave, etc. Por isso, não há ser finito que não traga em si sua própria negação (limitação, determinação).
A seguir, Alcantara Nogueira faz um estudo de vários pensadores marxistas, a respeito de Spinoza, como Lidia I. Akselrod, Plekhanov, etc., onde observa que poucos conseguiram penetrar mesmo de leve no cerne do pensamento de Spinoza. Os marxistas russos, em geral, concordam que o spinozismo é um materialismo, porém não mais progridem sobre a definição desse materialismo. Plekhanov, por exemplo, foi um dos poucos que se aproximaram de uma exata compreensão do pensamento spinoziano:
“Dos intérpretes marxistas de Spinoza, o mais sagaz foi talvez G. V. Plakhanov. Para referir-se a essa condição de Plekhanov, G. Kline assinalou que ´partindo do conjunto histórico concreto e dos fatos que modelaram a filosofia de Spinoza a essa posição [spinozismo como materialismo] na história do pensamento e sua influência no curso subseqüente da civilização européia, encontramos maior concordância entre os críticos marxistas`. E acrescentou: ´o revisionista Valentinov, contudo, objetou fortemente a tentativa de Plekhanov relacionar o spínozismo, histórica e filosoficamente, ao Marxismo. Escrevendo em 1908 acentuou que o sistema de Spinoza se aproximava mais do empiriocriticismo de Avanarius e Mach que do Marxismo de Plekhanov´” (1976, p. 151) .
Em verdade, Valentinov engana-se em sua interpretação, ao tentar reduzir o spinozismo ao falso materialismo de Mach, que no fundo é um idealismo e contra o qual Lênin escreveu em 1908 o seu famoso livro Materialismo e Empiriocriticismo, onde ele acusa Mach e Cia. de reduzirem o materialismo ao idealismo subjetivista de Berkeley e seus epígonos.

7) CAPÍTULO VI: “PROGRESSO SOCIAL E HISTORICIDADE EM SPINOZA”

Aqui, o filósofo cearense - após estudar alguns autores em relação ao pensamento historicista de Spinoza e de indicar Rodolfo Mondolfo como um dos primeiros a apontar ligeiramente esta orientação do pensamento de Spinoza – procura então determinar a verdadeira natureza desta historicidade.
O racionalismo de Spinoza é apenas um método, o uso da razão para alcançar o conhecimento, porém sem desprezar a experiência, a historicidade do homem em seu todo cultural. É o que ele diz em seu “Tratado político” (cap. I, p. 54, trad. José Perez, Rio de Janeiro, Edições de Ouro – hoje, Ediouro – 1968):
“Resolvendo, pois, aplicar a minha atenção à política, não foi meu desejo descobrir nada de novo nem de extraordinário, mas somente demonstrar, por argumentos certos e indiscutíveis, ou, noutros termos, deduzir da condição mesma do gênero humano, um certo número de princípios perfeitamente de acordo com a experiência” .
Quanto à origem da sociedade civil, Spinoza não parte das doutrinas contratualistas e abstratas de um Hobbes, Locke ou Rousseau, que fazem os homens se tornarem civilizados de um momento para o outro, após a celebração de um alegórico contrato social. Segundo Spinoza, não há oposição entre o estado de natureza e o estado civil, mas continuação daquele neste. O homem permanece na sociedade civil guiado pelos mesmos ditames (egoístas) que o faziam agir no estado natural - o esforço para autoconservar-se, que faz parte do seu conatus . Quer dizer, Spinoza não rompe com o estado de natureza, mas o conserva na sociedade civil, onde cada homem deve lutar por vantagem própria, visando sua autopreservação. Como os homens, de modo geral, agem irracionalmente, existem conflitos na sociedade civil e cada um deve defender seus interesses; mas se agissem racionalmente, o interesse de cada um não será incompatível com o interesse do coletivo. “Logo – diz Nogueira – se o estado de natureza não se define pela razão (como pretendem Hobbes, Locke e Rousseau, reafirmemos), no estado civil verifica-se o mesmo, sendo que o direito do homem será proporcional ao maior poder que ele obtenha quando se associar aos outros homens e, portanto, maior será a sua força” (1976, p. 193). Um homem só, isolado, não tem direitos, pois estes são de natureza social; ao viver em comunidade, o homem adquire direitos e tais direitos aumentam com o poder da comunidade. E o homem será tanto mais livre quanto mais racionalmente agir na sociedade.
Mas para compreender o homem, é preciso conhecê-lo em toda a sua extensão e uma dessas extensões é a sua História, “porque é nesta que verdadeiramente ele se encontra, realizando-a e modificando-a” (1976, pp. 193-4).
O pensamento historicista de Spinoza procura compreender o homem em todos os seus aspectos – a razão e a ação. Sua razão cresce com o aperfeiçoamento de seus instrumentos de ação, e estes com aquela, numa interação ou processo dialético que leva indiscutivelmente ao progresso humano. O intelecto por seu poder forma instrumento de trabalho, assim como acontece com as mãos humanas, que constroem seus utensílios. Assim explica Spinoza esse processo:
“As coisas se passam neste caso como com os instrumentos materiais: em referência a eles seria possível argumentar do mesmo modo. Assim para forjar o ferro é necessário um martelo e para ter um martelo, é necessário fabricá-lo, para o que são necessários outros martelos e outros instrumentos, os quais, por sua vez, para que os possuíssemos, exigiriam ainda outros instrumentos e, assim ao infinito; e desta maneira se poderia, vãmente, querer provar que os homens não tem nenhum poder de forjar o ferro. Mas do mesmo modo que os homens, de início, conseguiram, ainda que dificultosa e imperfeitamente, fabricar, com instrumentos naturais, certas coisas muito fáceis e, feitas estas, fabricarem outras coisas mais difíceis, já com menos trabalho e maior perfeição e assim, progressivamente, das obras mais simples aos instrumentos, e dos instrumentos a outras obras e outros instrumentos, chegaram a fabricar com pouco trabalho coisas tão difíceis; assim também a inteligência pela sua força natural fabrica para si instrumentos intelectuais com os quais ganha outras forças para outras obras intelectuais” (Tratado da reforma da inteligência, pp. 30-31, trad. Lívio Teixeira, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1966; cf. A. Nogueira, 1976, p. 177).
Esse trecho, muito citado por estudiosos de Spinoza, é considerado um “processo continuado do desenvolvimento histórico, que Marx chamará de processo da praxis que se subverte” (Mondolfo, Estudos sobre Marx, p. 93, op. cit.). Neste ponto, Spinoza antecipa Marx.

8) CONCLUSÃO

Spinoza, pois, com seu método racionalista, na verdade, não rompe com o passado, com a historicidade, com a “condição do gênero humano” e tampouco apela para um racionalismo puro, logicista, que despreza a experiência. O racionalismo spinoziano é apenas um método, o uso da razão para buscar o conhecimento (sendo o ápice dessa busca o conhecimento de Deus), porém sem deixar de lado o mundo prático, a historicidade do homem e a sua condição de membro participante de um todo cultural por ele criado. Neste ponto, como dissemos acima, Spinoza é um dos pioneiros a antecipar as ideias de Marx.
O trabalho de Alcântara Nogueira, sobre o qual acabamos de discorrer, é muito importante não só pela sua independência, originalidade e riqueza de fontes, como também e sobretudo por seu conteúdo e real contributo aos estudos de Spinoza e da filosofia, no Brasil e além fronteiras.

Obs.: este artigo sobre Alcântara Nogueira foi republicado pela editora Tirant lo blanch, São Paulo, 2020, na obra coletiva "Direito, Humanismo e Poder", em homenagem ao esse saudoso filósofo cearense. Autores do livro: César Barros Leal, Dimas Macedo, Flávio José Moreira Gonçalves, Francisco Auto Filho, Kennedy Reial Linhares, Michel Debrun (in memoriam), Noé Martins de Sousa, Oscar d'Alva e Souza Filho, Ravena Olinda Teixeira. Os organizadores da obra foram os professores Kennedy/Flávio, citados, a quem agradecemos. 

Em breve, mais dois artigos: 1) "A Filosofia de Berkeley"; 2) e "Estado e Partido no Marxismo-Leninismo" (este último artigo, já publicado na revista FILOSOFIA nº 2, Cadernos Uece, Fortaleza-Ceará,  EdUECE, 1995.)






2 comentários:

  1. Muito bom Noé, parabéns por guardar na lembrança e reviver em letras nosso representante cearense do Spinozismo.

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  2. Professor Noé, nosso mestre. Um grande abraço e parabéns pelo blog e pelas reflexões. Feliz Natal e um próspero 2012. Que em 2018 possamos celebrar juntos a memória de Alcãntara Nogueira, quem sabe com um grande evento filosófico para comemorar seu centenário!

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